18 de dezembro de 2006
Festa de Natal

A graça do Natal acabou para mim no dia em que deixei de acreditar em Papai Noel. Sem Papai Noel, o Natal se tornou mais uma festa. Uma festa sem metafísica, como qualquer outra.

Lembro que me intrigava a lógica do mérito que orientava a atribuição dos presentes. Ela fazia o Natal se estender por quase todo o ano, com as crianças preocupadas em serem boas para ganhar presentes. Isso de ser bom, que tanto parece atormentar os intelectuais nativos, nunca foi problema: todos nós sabíamos o que era bom e mau, justo e injusto, verdade e mentira. Difícil mesmo era conter o desejo voraz que não sentia fome, sede, sono, necessidade de banho - só um ímpeto incansável de brincar, sozinho ou com os amigos, permanente descoberta e reinvenção do mundo.

Viver sujo, só comer besteira e sempre fora de hora, falar palavrão, brigar, quebrar coisas, gritar e mais uma infinidade de pequenos delitos eram os deliciosos signos de uma liberdade tão natural e inconsciente que se confundia com a inocência.

Mas a gente sabia o que era bom e mau. Não só porque os adultos tentassem nos educar; o mundo nos educava, pela dor e pelo êxtase; e nós, crianças, nos educávamos uns aos outros. Logo cedo aprendíamos que não era possível querer tudo: era preciso negociar, um jogo muito sério que envolvia força, afeto e argumentos.

E sobre esse jogo de atos, adiamentos e renúncias relutantes pairava o ano todo a figura bonachona do Papai Noel, uma espécie de gerente de Deus. Porque era indiscutível que Papai Noel era humano. Imortal, mas humano. Então como ele conseguia essa combinação de invisibilidade e onipresença que lhe permitia entregar todos os presentes ao mesmo tempo e sem ser visto?

Relutei em deixar de acreditar em Papai Noel, apesar de todas as crescentes evidências de sua falsidade. O primeiro baque na crença foi a súbita proliferação de Papais Noéis. No Rio da minha infância só as grandes lojas tinham Papai Noel, sempre gordos e bem vestidos, com imensas barbas brancas. Mas, de repente, eles começaram a se multiplicar - mais magros, mal-vestidos e, pior de tudo, mal-humorados.

Foi por essa época que aconteceu o Natal mais feliz da minha vida. Como sempre, a família toda se reuniu para a consoada na casa de meus avós, no Largo do Machado. O ano talvez tenha sido 1965, por conta do quarto centenário da fundação do Rio. Um pouco antes da meia-noite, todos nós fomos para a praça e, ao som retumbante dos sinos da igreja de Nossa Senhora da Glória, do céu começou a cair uma chuva de papel de prata. Não se viam os aviões e os milhões de pedacinhos de papel prateado farfalhavam no ar contra céu de veludo se confundindo com as estrelas. Por alguns longos minutos - que durarão para sempre - adultos e crianças se igualaram em sua alegria quase insana.

Depois, quando vínhamos pela vila, de volta para casa dos meus avós, um dos primos mais velhos veio correndo nos buscar gritando "Papai Noel chegou!". Saímos enlouquecidos, eu e meu primo Maurício, os mais novos da família; subimos correndo a escada, mas quando entramos no quarto tudo que vimos foi uma sombra que parecia escapar pela janela e os presentes espalhados no chão. Mesmo assim, nossa fé sobreviveu intacta por mais um ano.